sexta-feira, novembro 04, 2005

-Inquirições da Alma-

Quis dona Júlia saber por que razão havia ele saltado fugazmente do interior do quarto, ao relento do sabor sombrio do tempo e à parca luz da madrugada. Mas afinal quem no seu perfeito juízo (e por que pretensões) sairia do calor do leito, aconchegado e ternurento para embrenhar-se no gelo?
Mais queria ela saber das razões por que dom Rigolletto saira ornado nas suas melhores roupas, perfumado com aroma de jasmim e lenço alvo no bolsa da jaqueta, como quando saía para os bailes nobres dos Castelhanos del Sario - a casa ao lado do grande lago que premeia o jardim de Aurélia (a virgem).
Está claro (seria?) que podia tratar-se de um caso amoroso clandestino. Um vício entranhado que falava mais alto. Será que dom Rigolletto deixara as malhas do jogo apunhalá-lo pelas costas? Ou, então, Dom Rigolletto andava inclinado para negócios obscuros de tráfico de rapé; ou lenços de seda?
Mas ele estava mais que ornado. Não saira sem a sua máscara viril. O pó branco que lhe cobria a cara. A cabeleira barroca, branca, que lhe escondia o cabelo. O sinal petulante que lhe adornava os contornos do lábio. Dom Rigolletto saira aprumado. E isso, ninguém contesta. Nem dona Júlia. Que horas antes se deixara enternecer nos braços gentis e másculos do italiano emprestado. (Rigolletto não era o nome de família).
Mas afinal ele seria artista? Contrabandista? Poeta boémio de ilustres casas de meretrizes? Ela não sabia. Por isso prometia vigília certa para um interrogatório apertado, sem tréguas, nem piedade. Ela não tolerava a traição. Nem sequer imaginava desculpa plausível para tal escape ao anunciar da aurora.
Foi durante estas e outras divagações que a dobradiça da janela guinchou. E com ela eis o foragido da noite; que em pézinhos de lã, ensaiava uma entrada (triunfalmente silenciosa- tentava!) na sala por onde havia saído.
Dona Júlia aguardou o final do exercício de destreza do amado. Depois inundou a sala com a luz de dois candeeiros de petróleo, para mostrar a sua presença (fúria e desagrado). Pálido (o pó branco assim o queria) dom Rigolletto arregalou os olhos e depois perdeu-lhes o domínio e desatou num pranto desafinado, soltando graves e agudos, sem grande consideração pela harmonia musical. Confessou-lhe a tormenta. Afinal havia desculpa. Contou-lhe as perdições sentidas e as paixões da alma.
O inquérito durou mais de duas horas. A neurose estava confessada. E dona Júlia concedeu-lhe o desejo de sair todas as madrugadas, sem inquirições da alma.

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