sexta-feira, março 19, 2010

Praia dos Ingleses

A tiritar de frio. Mar ali à frente, Atlântico-cobalto. Levantar a cabeça: Azul-céu. Deslizá-la em frente. Cargueiros em contraluz, recortados e portentosos mesmo a esta distância, tão pouco nítida e demasiado longínqua para que adivinhe qual a temperatura dos corpos que ali carrega. Quanto tempo a nado em água fria se aguenta até à lonjura? Que lonjura tem esse longe?

Cachecol enrolado ao pescoço. Pele escondida, arrepiada. Sedenta. Mãos encavilhadas nos bolsos de algodão deslizante. Os olhos trémulos da luz opaca e intensa do sol enrodilhado em nuvens. Ele já não vem.

Tábuas encaixadas, beatas deitadas ao chão. Cheiro de mar. Ar que cai no rosto, a tiritar de Primavera. Salvam-se as mãos, encerradas em casulos de casacos, quentes. Areia sépia, grão a grão, lambida por saliva de mar. Lasciva. Beijos molhados de água gelada e os passos em madeira falsa. Beijos.

Duas mulheres amarguradas. Outra de mãos que folheiam páginas de Fúria Divina. Os pés inchados. Como ela tinha os pés inchados e a alma triste. Estava triste. A alma não sei. Passava a mão pelo cabelo tantas vezes. Pentear-se da brisa que despenteia. Céu de fundo-horizonte-alaranjado-prata.

O caderno para as notas. A fotografia-telemóvel ao sol que veio. Ele veio. Afinal veio. Achávamos que já não vinha. Arrastou a modorra das nuvens e espreguiçou-se à tarde de fim, que as páginas daquela Fúria não sabem o que são. Talvez uma Conspiração contra a América. A que lias. A que urdes no pensamento, página a página para um baú de memórias de comprazimento. Quase adormeces. Mãos delicadas, finas, às vezes entristecidas, e subtilmente vivas para agarrar a cigarrilha. A mim. Cabeça cabisbaixa, concentrada. Não reparas que o vento te pôs fios do cabelo a tiritar. Branco, preto. Cinza.

Corpo inclinado. Pés pequenos. Demasiado pequenos para sapatos apertados. Mulheres, ainda, amarguradas com homens adúlteros. Camisolas de manga curta a esvoaçar. Tremelicar. Sangue de hormonas novas ainda a esfregar-se no ar. A saborear o ar. A degustar como se sai dos poros até descobrirem que não conseguem cheirar.

Yamina traz o chá. Branco. Tão branco que é âmbar. As folhas a descer. O quente a evaporar-se em frente às mulheres afligidas por homens infiéis e de olhos escondidos.

O homem lê lá atrás. Um cigarro esmiuçado pelos pulmões. Outro. Cinco páginas para cada um. Marlboro Light. Terá a voz rouca. Terá os dedos amarelados, nervosos, polidos por páginas de poucos livros.

As mulheres da praia a apanhar conchas. Há sempre mulheres na praia a apanhar conchas. Resgatadas do desencanto da velhice para a caixa dos sonhos de infância. Quantas caixas de infância temos? E é lá que queremos voltar.

Recolho-me. Penso. Respiro. Às vezes não respiro. Ou a respiração trata de me acelerar. Há sol, afinal ele veio.

domingo, março 07, 2010

s.o.l.e.t.r.a.r




Sou mundo em convulsão. Solidão.
Restos de pó nos armários da casa,
Casas, paredes de pedra, silêncios, imensos…
Um voo sem asa, apneia, sustém, liberta.
Sou autismo, convento de silêncios e agonias
Arrepios de liberdade que se vão.
Não me agarrem
Deixem-me ir leve, como pena, gota de água, chuvas brisas, areia lambida pelo mar
Ar, tanto ar. Deixa-me respirar…
Sempre o ar para me deixar ir, levar, arrastar, sem nada,
Só ir, ir, ir… Para ver se o pó da casa ainda é o mesmo. E voltar.
Não me agarrem, deixem o sal correr pelo corpo.
Deixem os dedos enrugarem de silêncios,
De pores-do-sol que não vejo se aqui ficar,
De ventos que me afagam rostos de dias,
Rompendo o espartilho com que me abraças a sufocar.
Sou mundo em convulsão,
Vulcão sem lava, réstia de sol com tuas nuvens
Que me apodrecem a vida
As veias lentas que me correm de esboçados sorrisos.
Nada. Em nada. Um ego empolado. Esmagas-me de silêncios…
Mudez aflita, omissões daquilo que não sou. Solidão.