quinta-feira, março 30, 2006

-A Igreja do Diabo-

Machado de Assis conta, que certo dia, o Diabo, frustrado com séculos de desorganização, ausência de regras, cânones e rituais - embora os lucros fizessem roer de inveja as mais cotadas multinacionais - resolveu fundar uma igreja. Assis, que na altura terá interrogado o Diabo, cita os preceitos da criatura (que neste contexto, note-se, não tem na adjectivação atribuída, um olhar depreciativo, mas assume, pelo contrário, condição privilegiada): "Enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo".
Depois de longa e propalada campanha de marketing para angariação de novos fiéis o Diabo viveu anos de "aparente" sucesso e regozigo com a nova manada de seguidores. Mas um dia, por acaso do decorrer da linha do dia, o Diabo descobriu que muitos dos fiéis professavam outras fés, rituais e orações às escondidas. Pasmado. Regressou ao céu a desafiar o deus do bem e exigir explicações. Esse, ciente e vacinado das contradições humanas, falou-lhe dos paradoxos inexplicáveis que regem os pensamentos. Desolado e enraivecido, o Diabo, decidiu embarcar numa longa viagem. E deixar à mercê a igreja fundada para procurar um especialista em frustrações da raiva. Após anos de busca, nada encontrou a não ser enganadores que ele bem conhecia. Mais tarde, decidido a recuperar do trauma, procurou um psicanalista que lhe disse que não há cura para entender as incoerências da humanidade. Mas se um dia algo próximo fosse descoberto, ele, o Diabo, ficaria desempregado eternamente. Frustrado, mas ao mesmo tempo aliviado, o Diabo entregou-se às terapias zen e uns preparados alucinogénios. E depois, esquecido dos traumas da incoerência voltou aos cabarets carnais e às ruas da amargura, para se recuperar para os anos de incongruência a que ficou assolapado para sempre.
Texto baseado no conto de Machado de Assis, A Igreja do Diabo (Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II)

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