segunda-feira, agosto 11, 2008

Contas de Rosário [um conto paciente]

Cinquenta e nove. Ela jurava que eram cinquenta e nove. Vezes sem conta sentira com as mãos gastas do tempo cada uma das pequenas bolas circulares polidas, como se o vento lapidasse, minuciosamente - e com prazer - cada uma das contas do rosário. A dona Cecília sabia que eram cinquenta e nove pedrinhas, por isso quando a vizinha do lado há pouco a contrariou e disse que eram sessenta, a dona Cecília virou costas e ficou de mal com a outra - com quem trocava lamentos e confidências há tanto tempo que nem elas sabiam ao certo os anos. Nem os registos estavam lá para o dizer. Ou as portas falavam; ou o acre da parede confessava o que ouvira.

Cecília apressou-se para casa. Conhecedora do caminho de olhos fechados, ciente de cada recanto que contornava a esquina que antecedia a humilde habitação, a mulher entrou de rompante e esquecida que o sol brilhava no céu, depois de mais de um mês de chuvas e ventos consecutivos, que estraçalharam as poucas colheitas dos quintais e dos campos que cercavam a aldeia. Ela quedou-se em casa. Abriu a porta do quarto de madeira rangente e pôs-se a contar em voz alta as contas do rosário. Era um vício que adquirira na missa do padre Samuel, em pequena, quando esse pároco rabugento e de cabelo grisalho sebento; voz grossa assustadora e andar trôpego, resolvia divagar nas homilias semanais, acrescendo à missa mais uma hora que o normal.

A dona Cecília - a “Cilinha”, desde os tempos em que achava que o mundo era gigante, mas depois que virou mulher encalhada para a aldeia mudou para "simplesmente-Cecília" (e contam as más línguas que foi mal agradecida ao recusar enxoval da madrinha de berço e declinar casamento com o filho do patrão da mãe, o famigerado Gonçalves de Alba, da quinta dos Alba de além-terras, bonacheirão, bronco das unhas dos pés à ponta dos cabelos que fazem estremecer qualquer lição de “hygiene”) – bem que ficava irritada com as delongas do padre Samuel. Preferia, naquela altura, bordar o seu mundo na ponta daquelas contas, do que ficar diariamente uma hora e meia a ouvir um homem inflamado, a berrar, panfletando política oca e as benfeituras do presidente da junta, apimentando calúnuas contra as saias curtas da filha da Mariquinhas e o diabo no corpo dos adolescentes. Para ele, os pobres coitados eram a encarnação multiplicada do demo.

A única palavra que despertava esta mulher desse embalo tão religioso de fachada, numa viagem pelos refúgios do desconhecido na penumbra no confessionário era: Ámen.
“Aleluia!” sentia um burburinho a formigar nas entranhas dos mais profundos desejos. Era visceral. Mas não se reconhecia ou sequer imaginava noutra condição. Fim de tarde. Antes da badalada das 18h e lá estava ela: genuflectida sobre a madeira do banco deteriorado. Inebriada com o incendo eclesiástico e aquele cheiro rançoso e azedo de madeira velha. Não podia sequer imaginar faltar ao ritualo. Imagine-se só o falatório do dia seguinte.

Desde pequena que a contagem das pequenas pedras era um passatempo, que ao longo da vida foi servindo para apagar mágoas em vez de pranto e reclamações. Esse choro existia sim: era endémico; mas desta forma foi refugiando a alma dos maus pensamentos e resguardando a paciência quando ela encontrava alguém na rua da aldeia que lhe ocupava a próxima meia hora com conversas sobre doenças intermináveis, idas ao médico, intrigas implacáveis da mulher do homem das sete saias; e má língua da tia Anicas – sobretudo quando na maioria das vezes referiam-se a nomes que ela não conhecia e, claro está, a conversa acabava sempre por se encaminhar para o sermão do padre Samuel. Certamente, ela anuia com a cabeça, ignata de que se tratara, enfim, essa mui nobre retórica.

Como nunca tivera tinha brinquedos, Cilinha habituara-se ao seu estimado rosário que guardava no bolso da bata azul-marinho - enquanto pequena - e agora no bolso semi-roto do casaco cinzento desbotado, puído e fora de moda, como tudo naquela aldeia.
Sentada na cama e irritada com a vizinha atrevida, a dona Cecília perdeu-se na conta das pedrinhas do rosário, por se ter deixado enlear em pensamentos que há muito não apareciam na mente de uma mulher cansada da intrusão das pessoas em vida alheia e desgastada pela solidão a que se encontrava na aldeia das pedras, onde a água canalizada chegou há pouco mais de um mês.

Ela bem se recordava dos rebuliços. O frenesim que não foi quando as torneiras começaram a jorrar a água que, anteriormente, era recolhida nas bacias e nos garrafões de plástico que os jovens da cidade traziam. A dona Cecília gostava da sensação da água a correr nas mãos. Uma descoberta que naquele dia a comoveu como nunca. Mais do que no dia em que a junta de freguesia, a mando da câmara municipal, lhe deu uma pequena casa de pedra no centro da vila que ela sabia ter duas janelas com vista para o campanário da igreja e uma porta de madeira polida de castanheiro. Ela conhecia o cheiro do castanheiro, sobretudo quando eriçado de ouriços. Aquele odor acre mas fresco, inundado de um amargor adocicado na garganta quando se exala o olor. Depois, ela sabia a textura com que ficava a madeira de castanheiro na porta se não fosse polida, como era o caso da sua.

Por isso, a dona Cecília dizia que a porta não ia durar muito tempo. Com mais dois Invernos como o do ano passado e lá apodrecia a entrada; e com ela o frio havia de entrar e trazer-lhe uma gripe como certa. Mas a mulher que conta as contas do rosário não gosta de pensar em saúde. Aliás essa foi uma palavra que desde sempre se ausentou do seu dia-a-dia. Ali nenhum médico fora alguma vez. Sempre que teve necessidade dos seus serviços ia na carrinha alugada da junta, que servia de táxi uma vez por dia, para ida e volta à cidade a 20 quilómetros. No total eram duas horas de viagem de terra incerta, vermelha, suada a contar com a volta, mas já se sabe que esse serviço acontecia com partida às 13h da tarde e volta às 19h. Contudo, para ter lugar na carrinha de nove lugares era preciso reservar com dois dias de antecedência. Por isso, ir ao médico era uma tarefa mais que difícil, senão impossível. Arranjar consulta dois dias antes e uma daquelas empreitadas que desfiam a paciência em industriais e obsoletos teares. Como saber se haveria lugar garantido para aquele dia ; não fosse a lista já estar toda preenchida para o mês.

E aventura trilhada de carrinha era, por si, motivo para ficar doente de ira e acicatado por desconfortável condição. Socalcos, pedras e silvas descuidadas no meio da estrada. Delongas ainda de um motorista improvisado, carcomido pela lentidão e desastrado como um míope prestativo. Esse era o Silva, o condutor, tinha apenas a carta de motociclos e à revelia da junta conduzia a carrinha, até porque era o único com alguma carta e veículos num raio de 20 quilómetros.

Depois dos socalcos, a carrinha fazia-se à estrada de alcatrão, inaugurada há pouco mais de três meses, porque o “então-candidato-a-futuro-Presidente-da-República-e-agora-actual” decidira visitar algumas aldeias do interior. Ora, como aquela aldeia constava da lista da autoridade máxima da República, a autarquia contraiu um empréstimos para que “aquela zona ficasse mais bem servida de mobilidade”, tal qual como constara nos jornais regionais. Mas foi mobilidade de pouca dura, já que o dinheiro das obras não deu para tudo: por obra e graça de uma entidade divina parte do dinheiro destinado para as obras foi usado para outros fins e na hora de pagar a factura - e de dar ordem de avanço da próxima etapa da obra - o saco financeiro, simplesmente, desaparacera sem deixar rasto, numa empreitada de grande finta ao jeito de um prendado futebolista.

O golo monetário estaria agora no bolso de alguém, sem relatos fidedignos, mas como constava nos boatos da região. Talvez até, segundo outras línguas igualmente de má índole e maliciosas – sabemos – por baixo da bata do padre. Mas schiuu, seria pecado pensar tal coisa! Segundo, ainda outras fontes de rumores descontrolados que, coincidentemente, nesse ano o presidente da edilidade construiu uma nova casa, com piscina, jacuzzi, sauna e outros luxos. As más línguas dizem que o resto foi para a viagem ao Brasil que a mulher do presidente há muito vinha a reivindicar num "resort" afamado. Mas isto são tudo informações que ficaram por confirmar porque as facturas do resto do dinheiro desapareceram, misteriosamente, e quando as entidades oficiais de investigação tomaram de assalto o edifício autárquico apenas encontraram o rescaldo de um pequeno incêndio que tinha havido precisamente no departamento de tesouraria e contabilidade.

Quezílias moralistas e infundadas à parte. A dona Cecília aprendera muito bem o silêncio e a importância das palavras de porta fechada. Ela agora apenas preocupava-se com as mãos molhadas no friozinho da água corrida como fios enovelados.
Sentir aquela macieza a deslizar pela pele enrugada, calejada de histórias e cunhada de segredos foi como tocar ao de leve a pele macia de bebé, única sensação parecida que esta mulher que conta pedras de rosário conseguia equiparar. Já mais calma, a dona Cecília resolveu desafiar a vizinha a contar, em voz alta, as contas do rosário. E se ela ficasse ofendida? É que a dona Cecília não era, assim, mulher religiosa. Era como que um refúgio na terra sem passatempos e sem outros quesitos para contemplar. Já nem bois via passar. Apenas se apegara ao rosário por ser o único brinquedo que desde cedo a acompanhou, porque lá de religião ela ficou farta com o padre Samuel, depois o padre António e mais o diácono Fernando - que tomavam todos o mesmo rumo enfadonho do discurso e pregadores de um moralismo que ela viu muitas vezes a ser quebrado.

Ela não acreditava em palavras exacerbadas e demasiado convictas do que deve ou não ser feito. Foi por aí que se consolidou o desinteresse da Cilinha desde nova, embora fosse obrigada até às cruzes finais da mãe a rezar em, voz alta de manhã, à tarde e nas vespertinas horas, mais o ofício de ajudar nos enfeites de flores do templo; na limpeza dos adornos; na higiene das toalhas e da feitura dos panos para os dias festivos. Só depois de mãe ter perecido é que a dona Cecília se deixou das tarefas que a prendiam por obrigação e se refugiou em casa alegando luto profundo, justificação pouco convincente aos olhos dos cerca de 50 habitantes desta aldeia perdida, que perdia jovens a cada ano que passava.

Agora esta mulher sentada na cama e com o rosário branco nas mãos pensava no desafio da vizinha. Assim podiam fazer as pazes e esclarecer o mal- entendido. Afinal, ficar melindradas por um simples erro de cálculo seria um acto pueril a que a dona Cecília não se queria entregar, embora estivesse realmente irritada com o facto da vizinha ter duvidado da sua palavra. Mas não podia ser, a dona Cecília não estava enganada. Fazia anos que ela contava as contas do rosário.

Virou-se. Volveu o corpo. E não retrocedeu no pensamento. Afinal, aquela amizade ainda era a claridade naquela penumbra humana. Saiu. Dobrou a esquina e saudou o homem de cheiro azedo que se sentava naquele mural ao entardecer, quer fizesse chuva ou sol. Agora com a leveza do andar, apesar de tudo, a dona Cecília apercebeu-se do cheiro quente da terra e que a humidade se começava a ausentar e pensou que estava um lindo dia de sol. Sentia agora o calor do astro diurno. Sentia a terra a secar por baixo dos pés e ouvia o estalar das pedras quando as calcava. Galgou ainda mais célere a rua e bateu à porta da vizinha. Amuada e empertigada a outra assomou à porta e a Cilinha, cabisbaixa mas convicente, pediu-lhe que contassem as contas do rosário. Ela assentiu e sentaram-se na sala para a cerimónia da contagem.

O ritual começou: uma, duas, três, quatro e assim por diante, cardinais enfileirados na ordem matemárica.
Já perto do final, dona Cecília lentificou a contagem, propositadamente, para ouvir a dicção da outra. Quando chegaram à vez do 58, estava quase desfeito o equívoco, reatada a amizade e quebrado o amuo corriqueiro que quase separou aquelas mulheres. Cecília percebeu. 58, 60! Explicou. Contou. A outra assentiu. Não se pode julgar quem não sabe contar. Cecília levantou-se. Pegou no rosário. Guardou-o na bata. E a caminho de casa rebentou o terço.

segunda-feira, agosto 04, 2008

Civilização Ketchup

A revolução não está nos “soutiens”; nem no LCD, nem o vídeo matou a estrela da rádio; nem no iphone, ou o ringphone – que está “quase-quase” a ser a aliança pós-moderna dos casais disfuncionais – nem no preservativo...
"Are you ready"? A revolução está no Ketchup. “I like to put it on my food, because it has the taste I love”… É o embaixador da Globalização (What?). Foi com ele que aprendemos tudo sobre a (des)cultura norte-americana [ser uma cultura “fast-food” também implica ser-se cultura, dizem – como sou aculturada nada entendo sobre os meandros dessas epistemologias caricatas]. Depois do amaciador de roupa [Bem-vindo ao mundo do cheiro asséptico] temos o molho agridoce que transforma a maior porcaria num manjar dos deuses. Arroz queimado: ketchup; aquela massa bizarra do desastrado na cozinha: ketchup; sal a mais; ketchup, ketchup, ketchup...
Pormenor (I bet you didn´t know!): nasceu na China e foi levado por ingleses para os Estados Unidos. Hum? Não há canto que não lhe dê um lar, sentado em cima da mesa, para temperar com esse pitéu avermelhado: um-doce-amargurado-salgadinho-quanto-mais-melhor; mil e uma marcas e a unânime harmonização gastronómica: pão torrado com manteiga, acompanhado de chocolate quente para beber (o casal sentado ao meu lado, ontem à noite, bem o pode provar); no pão com salsicha; no molho da massa esparguete (o meu irmão é “especialista” nesta receita se quiserem orientação!!! ); na tosta com orégão; na sopa (sim, há quem, aliás há gostos para tudo e esses, sabemos, não se discutem)...
Ketchup, sim: com ele aprendemos a bater na embalagem para o molho escorregar melhor; e no fundo, fundo (não desse) ele é a solução para os problemas alimentares: "ah filho, não gostas de peixe cozido, vai lá buscar o ketchup"...
Um segredinho: respiramos propagandas silenciosas . E no fundo, no fundo: somos todos civilização Ketchup. Será que podes mesmo provar que não? Tenha medo, muito medo!