terça-feira, julho 29, 2008

Amor Ecológico

Zuan perdeu-a. Não tem memória de quando terá sido. Talvez tenha sido aos poucos, em pequenas coisas. Daquelas como se cria uma estria. Ou como o pó que se acumula. Um dia atrás do outro. Outro: e vinte e quatro horas depois mais um, daqueles que passam e nem damos por eles. E quando percebemos, há coisas que já estão lá atrás, como se nunca tivessem existido, ou talvez façam parte de um baú empoeirado que deixámos no passado, como se fosse, assim: “há muito tempo”. Ou talvez demasiado tempo para se ser infeliz. Ele ainda insiste assim, "incerto-e-certo", com emails espaçados de um mês, para limpar o pó. Zuan vive na certeza dele, daquele dia, um de cada vez.

Por isso, a certeza é das mais incompletas dúvidas. Chegou a três. Houve até a fase dos três dias. Depois de três meses, chegaram até a trocar um email de palavras poucas no espaço de 35 segundos. Arroubos do momento para dizer nada. Aliás um traço da personalidade da comunicação, "emailmente" falando! Um simples: “pensei em ti; lembrei-me de ti; recebi isto e pensei que te pudesse ser útil". Elos que não se perdem, mas também não se mantêm. Lik já se esquecia de lembrá-lo. Um esquecimento normal, comparado a deslembrar a insignificância de uma consulta do médico, só recordado quando a memória recebe o alerta com fragmentos que remontam até à sensação de que ele ainda existia.

Lik, amarfanhara, levemente, um dia após o outro, como uma reabilitação de vício, o papel reciclado onde (re)escrevera aquele sentimento que nunca foi um lago tranquilo. Antes um mar profundo, em que as lições de abismo eram insuficientes para lá chegar. Já tinha voltado à tona há muito tempo. Secara o corpo molhado. E Zuan já lhe tinha sugado as entrelinhas que reescreviam toda e qualquer interpretação de que poderiam mergulhar juntos em apneia porque o ar seria suficiente. Não cairia sem fôlego de novo. Estava ali pronta sem reciclagens sentimentais. Amor ecológico não funciona. Lik sabe-o. Zuan também.

Deram um beijo no ecrã. Frio. Vazio. Branco. Vá se lá saber o que o meio esconde. Ela sabia, agora, que fora exactamente um mal entendido da linguagem de vida que os arrancava de si. O que a boca sentia, não sabia dizer. Na verdade, não existia nenhum problema: há ligações que, simplesmente, se convertem ao arroubo do contexto e quando se tenta dar continuidade (arrepio!) ele já não existe. Como a caixa grande de madeira da bisavô que ganha caruncho e pó. Lik não soprou. Achou que era altura de espirrar e combater a alergia. Há histórias crónicas de que já se curou. Zuan, arrependido, percebeu que o que ardeu estava em cinzas. E quando soprados desapareciam no ar. Em pó!

segunda-feira, julho 28, 2008

Gosta de janelas sem cortina. De janelas, simplesmente. De dormir de luz apagada e janela aberta para ver a lua lá fora. Há dias em que é mais sol. Não acorda sem olhá-lo. Há noites em que é mais lua. Não adormece sem se aconselhar. Há outras fases assim-assim em que ele é mais luz, quer seja noite, quer seja dia, ainda que feche os olhos e deixe de vê-la, para imaginá-la. Ele é luz, simplesmente. É todas as janelas por abrir até fazer um dia, antes de parir a noite. Nunca se encontra, mas também nunca se perdeu. Fica suspenso na insónia desse sono, ou no fechar de olhos dessa dormida sem abraço, e do abraço sem dormida. Não importa. Ele gosta de janelas sem cortinas para imaginar que um dia poderia morar na lua, se é que ela já não mora nele!

segunda-feira, julho 21, 2008

Meio Homem


Dorme atravessado na cama. Cortou-a em três pedaços iguais e dorme no meio. Caminha em metade do mundo. Não sabe o que isso quer dizer, mas a sua vida não é deste mundo. Respira pela metade em espaços de cinco segundos, até 30. Seca a virtude para a tornar vício. Disseca os sentimentos para transformá-los em algo balofo, como a metade do seu mundo. Queria viver por inteiro, mas o cérebro só pensa fragmentado, em três partes exactamente iguais, para se ater ao centro. Sabe que o mundo não é mensurável. Mas o seu, sabe-o bem, divide-se assim: nessa vivência exclusiva pela metade. Na verdade, Z. sabe que esse mundo assim tão seu e tão esquisito, não anda tão longe desse mundo que dizem por inteiro. É um meio homem. Mas nunca conheceu um homem por inteiro!

quarta-feira, julho 16, 2008

Amanhecer. Flores no ar. Imaginar que o vento atravessa os galhos despedaçados. Janelas. Líquidas manhãs de nevoeiro entranhadas. Encolhem-se os pés. Arrastam o chão. E o mundo ainda está para nascer.
Entardecer. Telas amareladas. Folhas galgadas. Saltos em bancos de jardim. Remar.Luz áurea, liquefeita em heras tardias.
Anoitecer. Flores fechadas. Sonhar que o vento dorme por um dia. Mãos na cara. Olhos madrugados. Fazer um mundo. E esperar que ele amanheça um dia.