segunda-feira, abril 17, 2006

Lá no alto, a nuvem começou a enegrecer. Bufou o vento que a inquietava e escondeu-se na densa neblina que se fechava. As gotas quiseram entrar nesse manto carregado. Envolver-se no mosaico cinzento que, sorrateiramente, penetrava o ar dissipado.
Cá em baixo, um chuveiro constante inundava já o alcatrão. E molhava os pés que pisavam o chão. Os carros que passavam, impiedosamente, sob a estrada vazia chapinavam as poças na berma, bem junto ao passeio. Ela ficou molhada. A lama escorregava pela perna morena. Mais à frente, ele sacudiu o casaco encharcado. O cinzento do pano virou preto. Ficou pesado. Ele não olhou para trás para vê-la. Ela nem reparou que ele também estava alagado. E estavam apenas três segundos de distância.

quarta-feira, abril 12, 2006

Llorca/Nicole Graham

Llorca/Nicole Graham, "New Comer", 2001
Um Electro-Jazz que vale a pena!

Mãos Silenciosas

Sabes que as rugas das mãos são o silencioso toque da memória,
Que aquecem o esquecimento do passado.
E que o sobreposto relevo dos traços
São os caminhos esquecidos
Das linhas tortas –
Tracejadas por amargas cúpulas de pétalas - e
Folhas rugosas.
Verdes e envelhecidas,
Como o grisalho do teu cabelo vivido;
E a robustez silenciosa,
Escondida na grandeza do teu sentir;
E a sensibilidade do teu pensar.
Do teu querer.
Do teu silencioso e terno olhar,
Antes de adormecer a saudade;
E o abraço esperado, ansiando recompensa paternal
Desprendida.
Liberta e um pouco embevecida.
Inquieta de novas para criar outras raízes perdidas,
Soltas para outras sementes.
Ansiante de as lançar,
Despojadas, sofridas,
Mas mesmo assim despojadas de amarras;
Presas apenas pelo sentimento indeclinável
De me querer amar.

(Poema feito para o meu pai, dia 3 de Abril)

quinta-feira, abril 06, 2006

É difícil dizer que o mundo é bonito
Que o mais que perfeito é possível. E existe.
É difícil dizer que o mundo é verdadeiro.
E que esse mundo interior.
Aquele pequeno que nos move, é direito.
É mais fácil dizer que os pequenos silêncios são perfeitos.

quarta-feira, abril 05, 2006

Vulgaridades

De ar esbugalhado, roupas decadentes, cheiro azedo e rosto enegrecido do ar saturado, ele passa, todos os dias, no meu caminho. (Pretensiosismo meu. Ainda agora cheguei. Talvez seja eu quem passe no dele. E ele já lá estava). As mãos parecem velhos trapos desfiados, com relevos cunhados por um tempo prematuro que passou antes de dever. Luas demasiado contempladas. Estrelas demasiado gastas pelo olhar, com o céu como tecto. Pequenas lâmpadas acesas que só se apagam com a cortina de luz que sobe, em passos lentos, com um olhar solar. Sempre que passa, pelos passeios imundos, de cor ferrugem e oleados pela sujidade, fala em voz alta, palavras fechadas. De desentendimento. Desabafos de um mundo próprio. Que ninguém inveja. Degradante. Triste. Revoltante, também. Mas estupidamente urbano e que fazem do dia-a-dia uma parvoíce de vergonha, mutilada pela vaidade. Quem passa tem medo. Receio de imundice. Ataque súbito, calejado de provocação. Não se sabe o que ele diz. Nem quem é. Mas apenas que passa ali, todos os dias de manhã, tal como qualquer um de nós, rumo ao trabalho. Rumo ao trajecto de um dia imposto. Talvez vergonha dele seja o sentimento. Misto de culpa e de nada.

terça-feira, abril 04, 2006

As motivações da alma

Jair gosta de showfight. Erineu gosta de Machado de Assis. À noite, Jair sai para a discoteca, enquanto que Erineu fica, ao som de Lugansky, a ler uma crónica de Zuenir Ventura.